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Migração: uma perspectiva humanitária


Por Arthur Mendes Lobo e Natália Salça* |


Há duas datas comemorativas importantes no mês de junho: Dia Mundial do Refugiado (20) e Dia do Imigrante (25). Temos pouco a comemorar e muito a refletir, principalmente na esfera de direitos dessas pessoas. Isso porque muitas delas não conseguem proteção e oportunidade nos países ou regiões em que buscam refúgio.

O ser humano normalmente muda de seu local originário para outra região/país, voluntariamente ou em decorrência de fatores ambientais, sociais ou econômicos. Além disso, ao longo da história, em vários locais do mundo, pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas, fugindo de ameaças e guerras.

Embora os refugiados possuam uma proteção específica, o termo “migrante” pode se referir de modo geral àqueles que se deslocam voluntária ou forçosamente.

Ao final da Segunda Guerra Mundial, mais de 40 milhões de pessoas foram obrigadas a deixar seus respectivos países de origem. Diversos conflitos após a retirada nazista também geraram dezenas de milhares de refugiados e migrantes.

As atrocidades vivenciadas naquele momento histórico foram determinantes para a tomada de consciência e os importantes avanços feitos nos direitos dos migrantes. A Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados foi adotada em 28 de julho de 1951, entrando em vigor em 22 de abril de 1954. O seu Protocolo entrou em vigor 1967. Aqui temos a base normativa do Direito Internacional dos Refugiados, estabelecendo preceitos mínimos para sua proteção.

A partir disso, os indivíduos que foram forçados ou pressionados a se deslocar devem receber abrigo na condição de refugiados. Independentemente de terem sido vítimas de perseguição em razão de sua raça, religião, opinião política, participação em grupos sociais, nacionalidade, etc, nos termos da Convenção de 1951.

Pode não parecer em uma primeira análise, mas, atualmente, os desafios são ainda maiores do que os milhões de refugiados da Segunda Guerra Mundial. Há muito o que refletir e reivindicar no Dia do Imigrante.

No dia 19.06.2017, foi divulgado o Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). O referido documento mostra o número de refugiados e de pedidos de refúgio no Brasil aumentou em 2016.

Enquanto 2015 foram registrados 8.863 refugiados no Brasil, em 2016 esse número pulou para 9.689 (aumento de 9,3%). E o número de pedidos de refúgio que em 2015 era de 28.670, passou para 35.464 (aumento de 23,6%).

O levantamento sobre refugiados no Brasil considerou dados do Comitê Nacional dos Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça, e foram antecipados em parte pela Acnur, durante encontro em São Paulo, ocorrido em 19.06.2017.

A Acnur aponta que em 2016 cerca de 65,6 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocar em todo o mundo. O número supera os da Segunda Guerra Mundial. É o maior da história.

Ainda segundo o relatório do Acnur, do total de pessoas forçadas a se deslocar, 10,3 milhões são novas pessoas e cerca de dois terços (6,9 milhões) delas se deslocaram dentro de seus próprios países. As crianças representam a metade do número total dos refugiados de todo o mundo. Conflitos políticos, guerras e perseguições são as principais causas dos deslocamentos.

Não bastasse isso, o tema da migração se tornou mais complexo diante do rigor dos Estados no controle de suas fronteiras.

No Brasil, a Lei 13.445/2017, chamada de Nova Lei de Migração Brasileira, recebeu vetos em disposições de grande relevância. Mas ainda assim a referida lei representa um importante avanço na regulação dos direitos dos estrangeiros. Revogou algumas discriminações do obsoleto Estatuto do Estrangeiro.

A Nova Lei de Migração brasileira, no entanto, é uma vitória quase isolada em um conjunto de derrotas na proteção dos direitos dos migrantes e refugiados no mundo. Ainda há muros físicos e institucionais em diversos ordenamentos jurídicos, que promovem a criminalização da migração e a xenofobia.

Nos últimos anos, a ausência de solidariedade da União Europeia no auxílio aos refugiados ficou evidente com a adoção de medidas para a restrição da entrada e devolução do maior número possível de migrantes. A Hungria, um dos principais países de acesso dos migrantes à Europa, além de recusar o plano de realocação, cercou grande parte da área limítrofe com a Sérvia, fechou suas fronteiras, respondendo com violência e detenções ilegais àqueles que as tentam cruzar.

A desorientação marca a trajetória dos migrantes e refugiados que procuram asilo. A escassez de informação, as condições desumanas em que muitas vezes são obrigados a aguardar a análise da autorização de permanência no país, o desconhecimento da língua e da cultura, são apenas algumas das muitas dificuldades que os migrantes têm que superar.

Na falta de uma política migratória adequada à magnitude da crise enfrentada, destacam-se as iniciativas da sociedade civil e poucas instituições comprometidas em minimizar o sofrimento daqueles que procuram abrigo no país estrangeiro.

A gravidade do problema requer o esforço contínuo em transformar em ações a retórica dos direitos humanos, rememorando sempre os valores aclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, notadamente que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.

Em maio de 2017, o Superior Tribunal de Justiça proferiu importante decisão em um caso em que uma criança e sua mãe eram refugiadas da República Democrática do Congo, de onde vieram devido à situação de grave e maciça violação de direitos humanos. A criança não tinha registro de nascimento – uma vez que se encontrava desprovida de qualquer documento de identidade. Assim, ela não conseguia a sua matricula em escola pública, nem tampouco atendimento de saúde.

O ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso REsp 1475580/RJ, proferiu o voto condutor do acórdão, deixando claro que, embora a criança estrangeira não pudesse ter uma certidão de nascimento brasileira, porque, de fato, nasceu no exterior, as escolas, hospitais e autoridades brasileiras têm o dever de aceitar o documento emitido pelo Registro Nacional de Estrangeiros (RNE), surtindo os mesmos efeitos de uma certidão de nascimento brasileira, para justamente lhe garantir o acesso igualitário ao atendimento de saúde e aos estabelecimentos de ensino. Em suma, o STJ garantiu a equiparação da certidão de nascimento brasileira ao RNE. Uma decisão bastante elogiável e consentânea com o sistema de proteção aos Direitos Humanos.

Em seu voto, o Ministro Relator ressaltou que “a Lei n. 9.474/1997 prevê, como forma de identificação, que o refugiado terá direito, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, a cédula de identidade comprobatória de sua condição jurídica, carteira de trabalho e documento de viagem (art. 6º). Nesse mesmo rumo, o art. 21 estabelece que será emitido um protocolo do requerimento quando o interessado solicita refúgio em favor do requerente e de seu grupo familiar, que autoriza sua estada no território nacional até a decisão final do processo, com possibilidade de expedição de carteira de trabalho provisória e serão averbados os nomes dos menores de quatorze anos, que serão titulares dos mesmos benefícios que seus responsáveis.

(…) o estrangeiro residente no Brasil goza de todos os direitos reconhecidos aos brasileiros, nos termos da Constituição e das leis e, dentre esses direitos, a matrícula em estabelecimento de ensino seria permitida ao estrangeiro com as restrições estabelecidas nesta Lei e no seu Regulamento (…) É assegurado aos estrangeiros refugiados a emissão do Registro Nacional de Estrangeiro (RNE), documento idôneo, definitivo e garantidor de direitos fundamentais iguais aos de brasileiros, contendo todos dados que qualificam o portador. O Registro Nacional de Estrangeiro é documento de identidade equivalente ao registro civil de pessoas naturais”.

O Superior Tribunal de Justiça ainda ressaltou que a Lei de Refúgio é clara quanto aos direitos das crianças e adolescentes dependentes dos refugiados no Brasil, pelo que a Certidão de Nascimento brasileira não é requisito para o reconhecimento da identidade formal da criança dependente de refugiado, nem mesmo para que essa criança seja matriculada em estabelecimento de ensino ou, ainda, que receba atendimento médico pela rede pública de saúde, tendo em vista a existência de documento equivalente viabilizador desses direitos (Registro Nacional de Estrangeiro).

Em suma, não podemos perder de vista que a migração é, antes de tudo, uma garantia internacional de direitos humanos, não se limita à segurança nacional. Por isso, o migrante ou refugiado, ao invés de ser percebido como um estranho ou forasteiro, deve ser acolhido como pessoa titular de direitos essenciais.

*Advogado. Professor da Universidade Federal do Paraná. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-São Paulo. Sócio do Escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço & Lobo Advogados

*Advogada no Escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço & Lobo Advogados, Pós-Graduada em Direito Internacional, Especialista em Direito Constitucional, graduanda de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Paraná


Fonte: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/migracao-uma-perspectiva-humanitaria/

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